quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O Ator: O Poeta da Cena


Texto: Cristina Tolentino

A arte do ator é uma teia de extrema delicadeza e de corajosa ousadia. Um percurso ávido, tecido pela paixão de conhecer o homem, o mundo, o cosmo, como uma necessidade implacável, apetite de vida, rigor cósmico, criação contínua.
Uma difícil e prazerosa arte de inscrever, com verdade, no tempo e no espaço da representação, os segredos da alma humana. Uma força criadora que apreende a interioridade ( as aspirações, os fluxos secretos do desejo) e se inscreve na exterioridade.
Uma trajetória, na qual o importante não é o se assentar no que foi acumulado, não é o capitalizar as habilidades técnicas e as teorias, nem passar por provas de genialidade e sim o enfrentar o desafio diário em abraçar as suas precariedades, as suas contradições, os seus limites, tendo como grande desafio, transformá - los em matéria expressiva, em algo ainda não nascido, fazendo-o nascer. Uma arte em vida, dinâmica, em movimento, em ação, germinada por esse desejo invencível do vir-a-ser. Uma representação habitada por marcas de sua própria história, gravadas em sua memória, escrita em sua própria carne.
Um trabalho orgânico, onde o ator coloca a sua humanidade não de maneira desatinada e descontrolada. Uma matemática criadora, embasada por uma técnica que garante qualidade, rigor, precisão e que vai possibilitar ao ator locomover-se, construir - se e se tornar uma presença ativa em cena, ou seja, o ator é ao mesmo tempo material e organizador de seu trabalho. Ele deve ser um compositor a cada dia. Todos os dias ele esculpe e compõe a sua obra: ele mesmo, obra viva do teatro. Todos os dias ele escreve uma poesia com o seu corpo.
Por isso, uma obra poética - porque capaz de nos enlevar para além de mundos conhecidos, permitindo - nos entrar em contato com o nosso ser essencial. O teatro é a arte de reavivar memórias, busca atingir o ser do homem, se comunica em um outro plano, diferente da realidade cotidiana, superficial e inútil. Rompe a linguagem para tocar a vida. Transmite verdades que de outro modo permaneceriam ocultas. Traduz o intraduzível. Torna visível o invisível Um ato revelador que exige coragem e generosidade.
Eis a trajetória do processo de formação do ator. Uma prática sedimentar, com camadas de razão e emoção, depuradas pela ação do tempo milenar, mostrando como a força de uma arte tão antiga continua atual e múltipla, possibilitando o ato único de alta comunhão e celebração e "nos imbuindo de um ardente e passageiro sabor de outro mundo, no qual nosso universo presente esteja integrado e transformado", como diz Peter Brook.

A Formação do Ator na Cena Contemporânea

Texto: Cristina Tolentino


No final do séc. XIX, início do séc. XX, certezas seculares vacilam: todos os dogmas são colocados em questão nas artes, nas ciências, nas sociedades, nas religiões.
Enquanto na idade média tudo era contemplado do ponto de vista de Deus, no renascimento esta concepção do mundo se inverte completamente: uma sociedade mercantil, onde o homem passa a valer mais por suas virtudes pessoais de audácia, cálculo e eficácia na ação, do que por seu lugar numa hierarquia de direito divino. Nesta sociedade, o indivíduo passa a ser o centro do espaço e da perspectiva. Todas as coisas são ordenadas a partir do olho do indivíduo, que se considera senhor e dono da natureza por suas iniciativas e seus empreendimentos.
Uma atitude ativa e não mais religiosa. O comércio, a indústria, o lucro, vão trazer a convicção de que tudo deve ser mensurável e medido, situado e definido não em função de seu significado divino, mas de seu significado para a ação do homem. Essa visão passa a ser considerada como uma realidade imutável, necessária, natural.
A natureza passa a ser considerada como uma máquina que o "senhor dos engenhos", o engenheiro faz funcionar.
Esta concepção foi generalizada por Descartes - "Penso, logo existo" e os materialistas do séc. XVIII - uma concepção que separa o pensamento da existência, o corpo da mente.
É o senhor dos engenhos que vê o mundo a partir de um só olho, imóvel.
No início do séc. XX, esse homem vai se tornando um apêndice de carne numa maquinaria de aço, que o manipula de fora e o aliena cada vez mais. É a mecanização do trabalho e da vida.
Assim, as diversas artes ( pintura, poesia, música, teatro, dança ) vão buscar uma nova linguagem para expressar as necessidades e sentimentos do final do séc. XIX e início do séc. XX, colocando em questão postulados estéticos, principalmente contra a arte clássica e suas deturpações acadêmicas. É a grande inversão que não mais considera a arte como a interpretação de um mundo dado e constituído, mas como a projeção de um mundo possível, não mais como um naturalismo preocupado em copiar a cotidianidade da vida. Revelar o possível é a missão das artes, fazendo-o surgir e se desenvolver para que participe da criação de uma vida maior e mais rica.
Todos os setores tradicionais da vida viram-se abalados no início do século.


A física moderna ( através de Eistein ) vem nos mostrar a relatividade do espaço e do tempo, retornando às suas origens, ao período inicial da filosofia grega - séc. VI a. C. uma cultura onde a ciência, a filosofia e a religião não se encontravam separadas.
Na Grécia, os sábios da escola de Tales de Mileto não se preocupavam com essas distinções. Seus objetivos giravam em torno da descoberta da natureza essencial ou da constituição real das coisas, a que denominavam de physis. O termo física deriva dessa palavra grega "physis" e significa a tentativa de ver a natureza essencial das coisas. Os adeptos desta escola eram chamados hilozoístas - "aqueles que pensam que a matéria é viva". Esses sábios não viam distinção entre o animado e o inanimado, entre o espírito e a matéria. Consideravam todas as formas de existência como manifestação da "physis", dotadas de vida e espiritualidade.
Tales de Mileto declarava que todas as coisas estavam cheias de deuses e Anaximandro encarava o universo como uma espécie de organismo mantido pelo "pneuma", a respiração cósmica, à semelhança do corpo humano mantido pelo ar.
Heráclito de Éfeso acreditava num mundo em perpétua mudança, um eterno "vir-a-ser". Ele ensinava que todas as transformações no mundo derivam da interação dinâmica dos opostos. A essa unidade, que contém e transcende todas as forças opostas, ele denominava "logos". O FOGO era seu princípio universal - um símbolo para o contínuo fluxo e a permanente mudança em todas as coisas : o dia vira noite; a noite vira dia; o quente esfria; o frio esquenta; o líquido vira sólido; o sólido vira líquido...


A divisão desta unidade deu-se a partir da escola eleática que pressupunha um Princípio Divino posicionando acima de todos os deuses e de todos os homens. Esse princípio foi inicialmente identificado como a unidade do universo; depois passou a ser encarado como um Deus Pessoal e inteligente, situado acima do mundo e dirigindo este mundo.
É daí que se originou uma tendência do pensamento, responsável mais tarde, pela separação entre espírito e matéria, gerando esse dualismo que se tornou a marca da filosofia ocidental. O passo decisivo nessa direção foi dado por Parmênides de Ekéia. Em oposição a Heráclito, Parmênides denominava seu princípio básico como o SER afirmando esse SER como único e imutável. Surge o conceito do átomo, como a menor unidade indivisível da matéria. Os atomistas gregos - como Demócrito - estabelecem uma linha demarcatória entre espírito e matéria, sendo a matéria formada de inúmeros "blocos básicos de construção". Esses blocos não passavam de partículas passivas e intrinsecamente mortas, movendo-se no vácuo.
Os filósofos voltam sua atenção, neste momento, para o mundo espiritual, pondo de lado o material, passando a concentrar-se na alma humana e nos problemas da ética. Esse conhecimento científico da antigüidade vai ser sistematizado por Aristóteles, tornando-se a base da visão ocidental do universo durante dois mil anos. Aristóteles acreditava que as questões concernentes à alma humana e à contemplação da perfeição de Deus, eram muito mais valiosas do que as investigações em torno do mundo material.
Essa imutabilidade do modelo aristotélico do universo, por tanto tempo, tem a ver com essa ausência de interesse no mundo material, reforçada pela Igreja Cristã, que apoiou as doutrinas aristotélicas durante toda a Idade Média.


A partir do Renascimento, há um novo interesse em torno da natureza, que passa a ser estudada a partir de um espírito científico e de um crescente interesse pela matemática. A formulação das teorias científicas, que vai tomar por base o experimento, é expressa em linguagem matemática.
Nasce a ciência moderna, tendo por base o pensamento filosófico, o qual deu origem a uma formulação do dualismo espírito-matéria. Esta formulação vem à tona no séc. XVII, através de Descartes - "Penso, logo existo". A mente é separada do corpo, recebendo a inútil tarefa de controlá-lo. O homem é dividido num grande número de compartimentos isolados, de acordo com as atividades que exerce - seu talento, seus sentimentos, suas crenças, etc. Essa fragmentação interna vai espelhar nossa visão do mundo "exterior", sendo encarado como um mundo constituído de uma imensa quantidade de objetos e fatos isolados.
A divisão "cartesiana", vai permitir aos cientistas tratar a matéria como algo morto. O mundo material é uma quantidade de objetos reunidos numa máquina de grandes proporções. É a visão mecanicista do mundo, que vai ser sustentada por Isaac Newton na elaboração da sua Mecânica, tornando-a alicerce da Física Clássica. O modelo mecanicista newtoniano do universo, dominou todo o pensamento científico do séc. XVII até o fim do séc. XIX.
Essa mecânica newtoniana foi por muito tempo considerada a teoria final para a descrição dos fenômenos naturais, até o momento em que os fenômenos elétricos e magnéticos - que não dispunham de espaço na teoria de Newton - foram descobertos. A descoberta desses fenômenos demonstrou que o modelo mecanicista era incompleto, pois podia ser aplicado unicamente a um grupo limitado de fenômenos - o movimento dos corpos sólidos no espaço, causado por sua atração mútua, ou seja, pela força da gravidade.
A grande máquina cósmica era vista como algo inteiramente causal e determinado. Tudo o que acontecia possuía uma causa definida e gerava um efeito definido.
O átomo, na concepção newtoniana era uma esfera compacta em que nada mais acontece.


No início do séc. XX, a mecânica de Newton deixa de ser a base de toda a física. A teoria da relatividade e da física atômica, vão esfacelar os principais conceitos da visão newtoniana do mundo : a noção de tempo e espaço absolutos, a natureza estritamente causal dos fenômenos físicos e o ideal de uma descrição objetiva da natureza.

De acordo com a teoria da relatividade, desenvolvida por Einstein, o espaço não é tridimensional ( largura, profundidade, espessura ) e o tempo não constitui uma entidade isolada. Ambos acham-se intimamente vinculados, formando um "continuum quadridimensional", o "espaço-tempo". Nunca podemos falar do espaço sem falar do tempo e vice-versa. Observadores diferentes ordenarão diferentemente os eventos observados, ou seja, não existe só um anglo de visão finito, acabado.
Toda a estrutura do espaço-tempo depende da distribuição da matéria no universo, ao contrário da visão newtoniana, que acreditava que o mundo podia ser descrito objetivamente, sem sequer mencionar o observador.


Com isso, a concepção de um universo finito, tanto no tempo quanto no espaço, tanto no sentido de grandeza quanto no da pequenez, passa a ser questionada e recusada.
Não existe átomo indisível, uma partícula última que estabelece um limite para a subdivisão da matéria e para o conhecimento.
Estamos destinados a um movimento infindável do pensamento e ação. A realidade não está dada e constituída, está sempre nascendo e crescendo.


Nas artes, o movimento de vanguarda cubista, deixa de recorrer às essas convenções fechadas, em que o centro único de referência determinava que o mundo fosse visto por um só olho, imóvel. Renunciando a este ponto de vista ciclope, os cubistas buscam sugerir por perspectivas múltiplas, um mundo visto por um ou vários homens que se movimentam, modificando assim, os ângulos da visão. (leia na seção de artes plásticas o texto sobre Cubismo).
Olhar é um ato e o pintor nos faz tomar consciência de que o mundo real é um mundo construído, de que outros mundos são, portanto, possíveis. Passa-se de uma visão fechada, finita, fragmentada, para uma visão aberta, infinita, no campo das probabilidades.

Na ciência, Einstein vem nos colocar que a partícula é um ponto circular de um campo ondulatório, no qual se concentra ou a partir do qual irradia a energia, deslocando-se e desaparecendo, para renascer. A concepção do átomo, como uma esfera compacta, finita (visão newtoniana), cai por terra. Esta imagem nova do indivíduo - ritmo e movimento - que não é um ser constituído, pronto, acabado, um átomo fechado em si mesmo, mas um núcleo denso de uma energia, onde se enlaçam forças e fibras - o tornam participante de um todo.

É a retomada da concepção do mundo de Heráclito : o mundo é um fogo eternamente vivo que se acende e se apaga na mesma medida.
Na filosofia, Nietzsche vai tratar essa questão como a "vontade de potência", ou seja, o vir-a-ser que não conhece nenhum cansaço, nenhum fastio - que não tem um ponto final. Na psicologia, Freud e a psicanálise vem nos trazer esse mundo do inconsciente, esse mundo dos sonhos para além do mundo cotidiano, externo e visível.

Todo esse contexto vem abalar as estruturas rígidas de visão do mundo e do homem. O artista, como um ser de visão, vai perscrutar e perceber isso de uma maneira especial e a partir da sua sensibilidade, indagações, inquietação, vai tecer com a sua arte, esse novo olhar inaugural do mundo e do homem.

No teatro, um outro ponto, que vai enriquecer e modificar a arte do ator do século XX, é a ampliação dos horizontes históricos e a abertura geográfica.
Em 1912, Edward Gordon Craig (ator, cenógrafo e pesquisador da arte do ator), vai a Moscou trabalhar com Stanislawski.

Em 1931, na Exposição Colonial em Paris, o Teatro de Bali (da Indonésia), revela-se para Antonin Artaud( ator e diretor, que trouxe uma das mais importantes contribuições para o teatro no séc. XX), como a concretização das suas idéias a respeito daquilo que o teatro deveria ser. A Ópera de Pequim excursiona pela Europa. Jersy Grotowski (grande pesquisador da arte do ator em Opole, Cracóvia) , estuda in loco, a arte e a técnica dos atores chineses.
Isadora Duncan
Isadora Duncan
Na dança, Isadora Duncan rompe com as convenções e os códigos que há séculos vinha sufocando esta arte. Ela vai buscar nos fenômenos naturais, nas ondas, no vento, nas nuvens, modelos de movimento e disciplinas rítmicas.
Ela dizia: "a dança não é, como se tende a creditar, um conjunto de passos mais ou menos arbitrários que são o resultado de combinações mecânicas e que, embora possam ser úteis como exercícios técnicos, não poderiam ter a pretensão de constituírem uma arte: são meios e não fim".
Ela rejeita a pantomina, na medida em que esta não é mais do que um substituto da palavra, reproduzindo o real em vez de criar.
"Tive três grandes mestres - Bethovem, que criou a dança em termos poderosos ; Wagner em formas esculturais; Nietzsche, que a criou em espírito. Nietzsche foi o primeiro filósofo da dança", dizia Isadora.
E é em Zaratustra de Nietzsche, que ela encontra aquilo que resume sua concepção de vida e de dança: "Há sempre um pouco de loucura no amor, mas há sempre um pouco de razão na loucura.


E para mim também, para mim que estou destinado à vida, às borboletas e às bolhas de sabão, e tudo o que a elas se assemelham entre os homens, parece-me ser quem melhor conhece a felicidade. Quando vê esvoaçar essas almas pequenas, leves e maleáveis, graciosas e brincalhonas, Zaratustra tem vontade de chorar e de cantar.
Eu só poderia acreditar em um deus que soubesse dançar.
Aprendi a andar, desde então, deixo-me correr.
Aprendi a voar, desde então não preciso mais que me empurrem para mudar de lugar.
Agora sou leve, agora eu vôo, agora um deus dança em mim.
Assim falava Zaratustra."

É a partir de todo este contexto, que vamos pesquisar, estudar, aprofundar e acompanhar a trajetória da arte do ator no séc XX, que retoma seu lugar e sua importância no espaço e no tempo da representação, enquanto um ser humano inteiro, disponível, presente, ativo, dinâmico, em movimento, em ação, em constante vir-a-ser, criando novas maneiras de perceber o mundo e pensar a experiência humana - experiência de recuperação material do ato de existir.
Texto: Cristina Tolentino
cristolenttino@yahoo.com.br

Os Pioneiros da Dramaturgia Centrada no Ator

Texto: Cristina Tolentino


A trajetória da arte do ator no séc. XX, resgata a importância e o lugar desse ator no espaço e no tempo da representação, enquanto um ser humano inteiro, presente, ativo, dinâmico, em movimento, em ação, em constante vir-a-ser, que cria novas maneiras de perceber o mundo e pensar a experiência humana - experiência material do ato de existir.
O ator - é ele mesmo, obra de arte viva. Por isso a necessidade, cada vez maior, em trabalhar o seu instrumento artístico, ou seja, seu corpo, sua voz, seus afetos, suas relações, seu conhecimento, sua criatividade e sensibilidade. Uma formação constante e sistemática, um laboratório de pesquisa, experimentação e conhecimento. Eis a busca desses grandes mestres, que vêm revolucionar a arte teatral, tornado-a real sem ser realista, unindo disciplina e espontaneidade, técnica e fluidez de vida, corpo e mente, matéria e espírito.


FRANÇOIS DELSARTE

Nasceu em Solesmes (França) em 1811 e morreu em 1871.
Ator e cantor, Delsarte dedicou sua vida à observação e classificação das leis que regem o uso do corpo humano, como meio de expressão. 
Delsarte se ateve, principalmente, a 03 tipos de observação:
  • Como se exprimem os sentimentos humanos na vida real

  • Pesquisa da estatuária antiga

  • Estudo da anatomia humana

  • A partir destas observações, ele estabelece um conjunto de preceitos, que foram ensinados entre 1839 a 1859, em Paris, no curso chamado "Curso de Estética Aplicada", em que participaram pintores, escritores, compositores, advogados, padres, atores e cantores.
    Delsarte dizia: "O gesto é mais que o discurso. Não é o que dizemos que convence, mas a maneira de dizer. O gesto é o agente do coração, o agente persuasivo. Cem páginas, talvez, não possam dizer o que um só gesto pode exprimir, porque num simples movimento, nosso ser total vem à tona, enquanto que a linguagem é analítica e sucessiva."
    Os dois princípios fundamentais da teoria de DELSARTE são:
  • O princípio da correspondência - "a toda função do espírito corresponde uma função do corpo e a toda grande função do corpo corresponde um ato espiritual." É a unidade corpo/alma, que Delsarte busca recuperar. É o ser humano na sua totalidade.

  • O princípio da Trindade - "os três princípios de nosso ser - a vida, o espírito e a alma formam uma unidade".

  • DELSARTE distingue ainda três tipos de movimento:

    As oposições - os movimentos de oposição são aqueles nos quais duas partes do corpo se movem ao mesmo tempo, mas em sentidos opostos. "A oposição dá a um movimento sua expressividade máxima. Se para afirmar ou convencer levamos nosso braço e nossa mão à frente, o gesto é fraco, mas se, ao mesmo tempo, fizermos com o rosto um movimento para trás e recuarmos um ombro ou mesmo a cabeça, o gesto alcança toda sua intensidade, seu realce, sua autoridade." É o princípio da assimetria - uma lei estética bastante comum à qual muitos artistas recorreram, como Miguel Ângelo na sua pintura da Capela Sistina (os movimentos de Deus dando vida a Adão e de Adão, recebendo-a, nos mostra esta dinâmica da oposição). A tensão das energias e o impulso da decisão são expressos quando se desenvolve, ao máximo, esta oposição de movimentos da qual todo o corpo participa.
    Exercícios sobre os tipos básicos de oposição
    Exercícios sobre os tipos básicos de oposição,
    tirados do livro de Alfonse Giraudet (1895),
    um aluno de François Delsarte.

    O Paralelismo - é quando duas partes do corpo se movem ao mesmo tempo e na mesma direção. "O paralelismo indica a fraqueza. É o gesto da súplica e da oferenda."
    As Sucessões - são movimentos que percorrem o corpo todo e acontecem em cada músculo, cada osso, cada articulação. "Eles são a forma privilegiada para expressar emoções." Analisando várias seqüências de movimento, Delsarte assinalou que, no teatro, o gesto deve preceder a palavra. Ele diz que a sucessão fundamental é a que, partindo do tronco, põe em movimento o ombro, depois o braço, o cotovelo, o antebraço, o pulso, a mão e os dedos, sendo que o impulso central mobiliza o corpo inteiro por ondas sucessivas, rigorosamente dirigidas e controladas.


    EMILE JAQUES-DALCROZE

    Músico, lecionou no Conservatório de Genebra (1892) e dedicou sua vida ao estudo das leis de expressão e do ritmo. Ele cria a ginástica rítmica, mas não como simples ginástica. "É preciso reabilitar o corpo e, ao mesmo tempo, reeducá-lo. A rítmica não é um fim em si, mas um meio para combater as nossas inabilidades, inibições e reencontrar uma harmonia perdida."

    Ilustração de certas fases do método currítmico de Dalcroze
    Ilustração de certas fases do método currítmico de Dalcroze: a "antecipação" de movimentos é
    claramente visível; os movimentos começam numa direção que é oposta à sua direção final. A
    pesquisa feita por Emile Jacques-Daslcroze (1865-1900) sobre ritmo e movimento teve
    considerável influência no teatro e especialmente na dança moderna, no fim do século XIX.

    Dalcroze fala da unidade física e espiritual que a igreja destruiu, induzindo o homem a desprezar o corpo e a ver a beleza somente no espírito, no abstrato: "é preciso estabelecer comunicações rápidas entre o cérebro que cria e analisa e o corpo que executa. É preciso reforçar a faculdade de concentração, é preciso canalizar as forças vivas do ser humano, disputá-las com as correntes inconscientes e orientá-las para um alvo que é a vida ordenada, inteligente e independente." Os exercícios desenvolvidos por Dalcroze são embasados na respiração. Com acompanhamento do piano, desenvolve exercícios de flexibilização, rotação, centra os pontos de partida do gesto, exercita os alunos a cantarem em ritmos cada vez mais difíceis e em todas as posições, possibilitando a descoberta do senso ritmo muscular, "que faz de nosso corpo o instrumento em que se representa o ritmo, onde os fenômenos do tempo se transformam em fenômenos do espaço." Buscar uma disponibilidade corporal e espiritual - este foi o objetivo de Dalcroze. "Ritmo é ordem e movimento - a expressão da necessidade mais íntima, da aspiração mais secreta. Espiritualizar o que é corporal e encarnar o que é espiritual."

    ADOLPHE APPIA (1862-1928)

    Appia colaborou com Jacques Dalcroze de 1906 a 1926, trazendo suas pesquisas referentes ao espaço e à luz. " Consciente do seu corpo, o aluno toma consciência do espaço, dos volumes." A encenação, segundo Appia, deve permitir ao ator explorar e integrar na sua representação tudo que é elemento cênico, fazer de cada um deles um agente da expressão teatral: " Quanto mais a forma dramática for capaz de ditar com precisão o papel do ator, tanto mais o ator terá direito de impor condições à estrutura do cenário, pelo critério da praticabilidade; e, por conseguinte, tanto mais acentuado se tornará o antagonismo entre essa estrutura e a pintura, uma vez que esta se encontra, pela própria natureza, em oposição ao ator, e impotente para preencher qualquer condição que emane diretamente do ator."


    cenário: Espaços Rítmicos.
    Adolphe Appia: Luz do Luar, da série de cenários Espaços Rítmicos.
    Foto retirada do livro HISTÓRIA MUNDIAL DO TEATRO - Margot Berthold. Editora Perspectiva.

    Appia constatou que a cenografia deve ser um sistema de formas e de volumes reais, que imponha incessantemente ao corpo do ator a necessidade de achar soluções plásticas expressivas. Os obstáculos (sistema de planos inclinados, de escadas, de praticáveis), vão obrigar o corpo a dominar as dificuldades deles resultantes e a transformar essas dificuldades em trampolins para a expressividade. São os "espaços rítmicos".

    Também a luz deixa de ser apenas um instrumento funcional para assegurar a visibilidade do espaço cênico. A luz terá a função de esculpir e modular as formas e os volumes do dispositivo cênico, suscitando o aparecimento e o desaparecimento de sombras mais ou menos espessas ou difusas e de reflexos. Appia busca multiplicar as possibilidades expressivas da luz, como instrumento essencial de animação do espaço cênico.
    A grande contribuição de Appia para o teatro foi o seu empenho em substituir a imitação (cenário realista) pela sugestão (simbologia), buscando a unificação do espetáculo (ordenando, entrosando e articulando os elementos), que só poderá ser atingida, se o elemento-base da estrutura da encenação for definido e designado. E esse elemento é o ATOR. Só assim, segundo ele, poderemos fazer da encenação uma autêntica obra de arte.


    JACQUES COPEAU

    Copeau vai empenhar-se, no seu trabalho no Vieux-Colombier, em ressuscitar um teatro liberto das velhas convenções: " um teatro novo sobre alicerces intactos, e limpar o palco de tudo quanto o suja e o oprime." Tudo que distrai a atenção do essencial, tudo que é ornamento espetacular, é inútil e nocivo: " a encenação não é o cenário - é a palavra, o gesto, o movimento, o silêncio; é tanto a qualidade da atitude e da inflexão quanto à utilização do espaço." Copeau inclui a rítmica de Jaques-Dalcroze em seu projeto do Vieux-Colombier, buscando desenvolver não uma técnica em si, mas no sentido de criar um estado de espírito e uma disponibilidade muscular. Indignado com as práticas do teatro comercial, ele deseja recuperar o homem-ator.
    Em 1913, ele já sonhava com uma escola técnica para a renovação da arte dramática francesa. " Será um local de comunidade, onde o aluno seguirá um treinamento." Criar um grupo de trabalho para experimentar métodos de reeducação teatral, em que a formação corporal possa tornar-se sistemática - esta é uma busca dos homens de teatro neste novo tempo.
    Copeau, em seu trabalho, torna o ator mudo temporariamente. Força-o a sentir de novo a necessidade de exprimir-se, depois a exprimir-se de outros modos, além da palavra, falar com palavras e sons rudimentares, pouco numerosos, mas justificados e essenciais. É o método da Improvisação.
    Inspira-se na Comédia dell'arte. Tira os textos prontos do ator e o reconduz à pobreza do Canovacci*, buscando despertar a imaginação, desenvolver a capacidade de jogar e de inventar. No Vieux-Colombier os atores praticavam a ginástica rítmica, a esgrima, a acrobacia, a dança e o canto. * Canovacci era um roteiro usado pelos atores da comédia dell'arte, a partir do qual criava-se o espetáculo. Não havia um texto pronto, acabado.


    CHARLES DULLIN

    Dullin atuou com Jacques Copeau e fundou em 1921 o Atelier - um laboratório de pesquisa dramática, uma organização corporativa, onde " o artista conheceria a fundo o instrumento de que ele deve servir-se."
    Também se inspirou, como Copeau, na comédia dell'arte, desenvolvendo exercícios de improvisação, que possibilitavam ao aluno, descobrir seus próprios meios de expressão.
    Teve como base para os exercícios, as sensações dos cinco sentidos: "sentir antes de exprimir, ver antes de descrever o que viu, escutar e entender antes de responder. Daí nasce comparações, lembranças - sentimentos interiores se libertam e se expressam."
    Contra a voz na máscara, Dullin busca fazer com que a voz conserve seu caráter natural, podendo se colocar sozinha, através de exercícios de respiração e descontração.


    EDWARD GORDON CRAIG (1872-1966)

    A busca de Craig é penetrar no cerne do mistério teatral. Suas principais idéias estéticas são:

  • Oposição formal ao realismo que fotografa a realidade, em vez de transmiti-la artisticamente. "O realismo é apenas exposição. A arte é revelação."

  • O ator não deve se esforçar para parecer bem em um papel, mas deve nos mostrar "como cada coisa é bela."

  • O teatro não se destina a nos mostrar a imagem da vida e dos males daqui, deve " suscitar em nós a nostalgia do que não é deste mundo."

  • À palavra vida, incessantemente glorificada pelos realistas, Craig opõe a palavra morte. "O mundo desconhecido da imaginação é somente a morada da morte."

  • Busca da arte sacralizada, que representa deuses e heróis, não homens.

  • Preconiza a atuação de marionetes e via nesta marionete um símbolo. A marionete, diz Craig, "pode ajudar o ator a se libertar das imitações de uma interpretação realista que só o leva a excessos e maneirismos." Não via a marionete no sentido caricatural, mas no seu sentido cerimonial, ligado às suas origens ritualísticas ou às manifestações religiosas do Oriente. A marionete esfinge. Sonha com uma supermarionete, símbolo da divindade, sonha em ressuscitar uma cerimônia em louvor à criação. Num primeiro momento, Craig deseja substituir o ator humano por uma marionete, pois segundo ele, o ator traz emoções difíceis de serem controladas pelo seu excesso de egocentrismo.

  • O teatro ideal para Craig, é o teatro que ele chama de durável, no qual o ator deve controlar o seu corpo para que o mesmo não seja afetado pelo seu ego. Por isso propõe a supermarionete, que será dotada de vida e paixão, mas rigorosamente controlada e despida de egoísmo. Neste sentido, o teatro clássico hindu é o que corresponde ao seu ideal: intérprete com técnica perfeitamente afiada, o código dirigindo a expressão e a espiritualidade. Ele pensa em suscitar um super-ator.

  • Mais do que uma técnica eficaz, Craig sugere a necessidade de uma ética: renunciar à ambição pessoal, ao sucesso passageiro. "Seu objetivo não é se tornar um ator célebre, mas um artista de teatro." Ele diz: "Se após cinco anos de palco você tiver sucesso, considere-se perdido. É preciso dedicar a vida inteira à busca."

  • Quer levar os atores a não ficarem presos à reflexão: " não é pensando que se pode ver o céu, a gente o vê, nós o percebemos através de nossos sentidos. Sentido e alma em vez de cérebro, o meio mais elevado e não o mais baixo."

  • Teatro é gesto e movimento em dança.


  • Desenho para Macbeth
    Desenho para Macbeth, 1909


    Craig cria sua escola em Florença. Mais que uma escola, Craig quer construir um laboratório experimental, onde o importante não é montar uma cena ou um espetáculo, mas formar gente de teatro. Depois do ator se exercitar em várias disciplinas, vai descobrir "cientificamente" os princípios gerais, que vão permiti-lo montar todos os gêneros de peças.
    A escola de Craig constituiu-se de alunos seniores e juniores. Os grupo dos seniores, eram em número de vinte, com idade entre 20 e 40 anos. Um grupo composto de jovens músicos, pintores, arquitetos, eletricistas. Paticipavam da pesquisa e eram professores dos juniores.
    Os juniores, alunos pagantes, faziam estágio de uma temporada, durante a qual trabalhavam a voz e o movimento. A preocupação não era ensiná-los a representar. Estudavam várias disciplinas e depois passavam por um exame eliminatório.Os aprovados continuavam na escola por um período de dois anos e podiam então, escolher uma especialização.
    Na escola de Craig, os alunos exercitavam ginástica, dança, mímica, esgrima, voz. Iniciava nos planos de cenário, na construção de maquetes, na iluminação. Tinham aulas de história do teatro e história da marionete, como também aprendiam a manipula-la.
    Craig ajuda os alunos os alunos a descobrirem o ser humano que há neles, mas exige que ultrapassem a sua personalidade. " O artista morre por sua arte."

    Electra
    Electra, 1905

    Além desta busca de recuperar o homem-ator ou o superator, Craig veio revolucionar o espaço cenográfico. Suas pesquisas foram compostas de reflexões teóricas, de projetos, de maquetes e de realizações cênicas efetivas. Ele propõe a nudez do espaço, o jogo do claro-escuro e rejeita qualquer decorativismo. Um espaço em constante mutação, através do jogo conjugado da iluminação e de volumes móveis. Craig propõe escadas, planos superpostos, biombos (screens ) não figurativos, feitos de tecido ou de madeira. "Acima desses biombos o teto parece anular-se, onde se estendem misteriosas zonas de penumbra. A luz passa a intervir no ritmo do espetáculo." Craig foi muito marcado pela teoria wagneriana do "drama musical do futuro", que preconiza uma nova arquitetura teatral como local e instrumento da fusão de diferentes elementos que integram o espetáculo: "poesia, música, pintura, arte do ator. Aos olhos de Craig essa fusão exige não apenas um espaço adequado, mas também um condutor capaz de realizá-la: o régisser (diretor), que deve intervir em todos os níveis do espetáculo. Uma teoria cenográfica que se aproxima das propostas de Appia: "o trabalho do cenógrafo - ou melhor do régisser - não consiste em representar o real, nem em decorar o palco, mas em inventar uma estrutura que utilize as três dimensões do palco e consiga criar uma contrapartida visual das tensões e do dinamismo específicos da obra encenada."
    São estes grandes pensadores e mestres do teatro que nos abrem as portas para um novo tempo teatral: uma arte centrada no ator e na essência do espetáculo. Um ritual onde todos podem participar, desde que sejam iniciados. Um ofício, em que o importante não é fazer sucesso, mas a construção diária, persistente, generosa do nosso ser artístico.
    Na continuidade da nossa pesquisa, falaremos sobre Stanislawski, Antonin Artaud, Grotowski, Peter Brook, Eugênio Barba e Tadeusz Kantor.
    Texto: Cristina Tolentino

    Konstantin Stanislawski

    (uma proposta ética e a busca da organicidade na ação cênica) 


    Texto: Cristina Tolentino

    Stanislawski (1863 - 1938), alguns meses antes do seu falecimento
    Stanislawski (1863 - 1938), alguns meses antes do seu falecimento,
    circundado por alunos, atores e diretores durante um ensaio em seu estúdio.
    Foto retirada do livro "A Arte Secreta do Ator", de Eugênio Barba e Nicola Savarese.


    A contribuição de Stanislawski para o teatro moderno e contemporâneo é, sem dúvida, de fundamental importância, enquanto arte do ator e da montagem.
    A busca de uma criação orgânica, em que o ator esteja inteiro e integrado na ação cênica e a dimensão estética e ética, trouxe para o teatro a recuperação do seu verdadeiro sentido: "viva a arte em você e não você na arte". Este conceito tornado prática nas experiências do teatro de Stanislawski, vem trazer uma nova dimensão a esta arte: a união do homem e do artista, a dedicação, a generosidade, a disciplina, a sensibilidade, a formação constante do ser inteiro do ator, o jogo dialético da interioridade e da exterioridade.

    Konstantin Sergueievich Alexeiev Iakovlev é o nome verdadeiro de Stanislawski. Em seu trabalho procurou desenvolver nos seus atores habilidades e qualidades que proporcionaram aos mesmos, a oportunidade de liberar sua individualidade criativa, aprisionada, muitas vezes, por padrões estereotipados que Stanislawski percebeu e criticou no teatro comercial de sua época. Ele diz que a libertação e a individualidade devem ser o objetivo principal de toda escola teatral.
    Treinamento nos estúdios de Stanislawski em Moscou
    Treinamento nos estúdios de Stanislawski em Moscou.
    Seguindo a linha das ações físicas, exercícios com bastões.
    Foto retirada do livro "A Arte Secreta do Ator", de Eugênio Barba e Nicola Savarese.

    Num primeiro momento, Stanislawski busca abrir o caminho das potencialidades criativas de seus atores. Potencialidades profundamente ocultas, que serão descobertas durante o processo de trabalho, através de atividades que preparem o ator para o trabalho criativo. Ele vai buscar no inconsciente a fonte para esse processo. É neste estágio que Stanislawski trabalhou com seus atores ativando a "memória emotiva" (memória pessoal do ator) para a criação do personagem, além do "se" mágico (dada uma determinada circunstância, como eu reageria?). Mas ao longo das suas pesquisas, ele vai percebendo que o trabalho em cima dos sentimentos é algo bastante abstrato. É quando descobre a importância das "ações físicas". Nesta fase ele chega mesmo a negar a experiência anterior: "Não me falem de sentimentos, não podemos fixar sentimentos, só podemos fixar as ações físicas".

    É neste estágio que o conceito "memória emotiva" muda para "memória corporal".
    "O ator é o maestro das ações físicas", diz Stanislawski. São as ações físicas que guiam o ator ao verdadeiro sentido no processo de elaboração de seu papel e também representam o meio principal para a expressividade do ator.
    E uma das primeiras condições é que o ator pense no que vai fazer e não no que vai sentir: "o ator sobe no palco não para sentir ou experimentar emoções e sim para atuar."

    Stanislawski dizia: "Não espere emoções, atue imediatamente". Persuadir, consolar, perguntar, reprovar, perdoar, esperar, perseguir são verbos que expressam ações da vontade, ao contrário dos verbos irritar-se, compadecer, chorar, rir, odiar, amar, que expressam sentimentos. Se o ator ler na anotação do autor "chora" e busca com toda sua força extrair lágrimas, sendo que as lágrimas não surgem, vai acabar chorando de forma estereotipada. O mesmo acontece com o riso. Quem não conhece uma risada forçada e falsificada de um ator? Este tipo de interpretação não atua sobre o público de forma mais profunda; só vai tocar na periferia de seu sistema nervoso". O ator deve compreender a necessidade de realizar ações orgânicas, em que todo o seu ser esteja envolvido e presente: "o ator deve estar sério e não fingir seriedade". Para isto, ele deve acreditar no que faz, como "as crianças quando brincam - um pedaço de madeira passa a ser um carrinho ou um trem ou um avião e elas acreditam nesta transformação".
    Ao fundar o Teatro de Arte de Moscou, juntamente com Vladimir Nemirovitch-Dantchenko (1858-1943), Stanislawski assim descreve o que pretendiam: "Nós estávamos protestando contra a forma de se atuar no palco, contra a teatrada e o pathos afetado, a declamação e a representação exagerada, contra o sistema de estrelato que arruinava o ensemble, contra o modo como as peças eram escritas, contra a insignificância dos repertórios. A fim de rejuvenescer a arte, declaramos guerra contra todos os convencionalismos do teatro: no desempenho, direção, cenário, trajes, entendimento das peças, etc". O trabalho do ator, que deve levar a um teatro profundamente veraz e artístico, tem de ser escrupulosamente preparado pelo trabalho com o ator.

    Stanislawski, em toda sua vida, deu o exemplo de que é necessário estar preparado para o trabalho, principalmente o trabalho de laboratório e dos ensaios enquanto processos criativos sem espectadores e o treinamento para o ator. E o treinamento, indispensável para os atores, deve compor-se de exercícios de tipos distintos, mas ligados por um fim comum.
    Cada "ação física" deve ser precedida por um movimento subcutâneo que flui do interior do corpo, desconhecido, porém tangível.
    Diz Stanislawski: "Evitem no começo as tarefas demasiadamente difíceis. Agarrem com precisão as ações físicas ao seu alcance, busquem nelas a lógica e a conseqüência sem as quais não vão encontrar a verdade, a crença e finalmente esse estado que chamamos estou".

    Ao falar em "ações físicas", Stanislawski referia-se a um trabalho eminentemente técnico, que envolve o ator como ser humano integral ( corpo; mente e alma; interno e externo). O trabalho do ator sobre si mesmo, trabalho de percepção do movimento. A busca de uma ação acreditável. A credibilidade da ação, que é diferente de uma ação realista e que exige precisão, justificação interior, presença total do ator. A plástica para Stanislawski não é um movimento, uma gestualidade qualquer. É aquela gestualidade que funciona na cena, no palco. Ações conscientes, não mecânicas, que vêm de impulsos interiores, que tenham conteúdo. Ações justificadas e funcionais.
    Representações da figura de Niké
    Representações da figura de Niké (vitória).
    Foto retirada do livro "A Arte Secreta do Ator", de Eugênio Barba e Nicola Savarese.

    Foi ele que usou pela primeira vez o termo partitura. Segundo Eugênio Barba, o termo partitura, implica:
  • "a forma geral da ação, seu ritmo em linhas gerais (início, ápice, conclusão);

  • a precisão dos detalhes fixados: definição exata de todos os segmentos da ação e de suas articulações ( sats, mudanças de direção, diferentes qualidades de energia, variações de velocidade);

  • o dínamo-ritmo, a velocidade e intensidade que regulam o tempo (no sentido musical) de cada segmento. É a métrica da ação, o alternar-se de longas e curtas, de tônicas (acentuadas) e átonas;

  • a orquestração da relação entre as diferentes partes do corpo (mãos, braços, pernas, olhos, vozes, expressão facial)."


  • Stanislawski exigia que o ator tivesse uma linha de ação preparada. Essa linha devia ser a partitura das ações físicas, mas não simplesmente uma ação sem conteúdo, sem justificação interior. Como diz Arkidius Nikolaievich, um dos atores de Stanislawski: "em toda ação física que não seja puramente mecânica e sim justificada em nosso interior, se encontra a ação interna, que é a vivência. Desta maneira se criam duas plataformas:interna e externa e as duas se infiltram mutuamente."

    Portanto, o trabalho das ações físicas não se reduz a simples ações vazias. Entra aqui um jogo de uma série de propriedades do organismo de onde se liberam os impulsos que nascem das ações físicas e ao mesmo tempo as impulsionam.
    É um processo, onde há a participação simultânea de todas as forças intelectuais, emocionais, espirituais e físicas do organismo.
    Stanislawski dizia: "agarrem-se com mais força às ações físicas. Elas são as que lhes darão a liberdade e a genialidade artística da natureza criadora" (....) "as qualidades nascidas desta técnica têm que formar a base da arte de nosso teatro, diferenciando-o de todos os demais. É uma arte sublime. Porém, exige um constante trabalho de auto-aperfeiçoamento. De outro modo, corre o perigo de degenerar, de anular-se, um perigo muito mais imediato do que vocês mesmo supõem" (...) " O domínio da técnica deve ser patrimônio de todo o nosso organismo teatral, abarcar todos os seu atores e diretores. Nossa arte é uma arte coletiva. Não nos basta ter alguns intérpretes brilhantes em cada espetáculo.Temos que pensar, conceber o espetáculo como uma conjunção única e harmoniosa de todos os seu elementos, como uma obra de arte total" (...) " As bases desta técnica não pode ser transmitida nem oralmente nem por escrito. Tem que ser estudada na prática".


    Para Stanislawski, a arte está em constante desenvolvimento, em constante movimento e exige constante renovação, auto-aperfeiçoamento: " e recordem isto: de vez em quando ( quatro a cinco anos) todo ator talentoso e exigente tem que voltar a aprender o seu ofício a partir do zero. Há que procurar, dia após dia, elevar sua cultura artística.
    Ele mesmo, foi o grande exemplo desse estar em movimento, foi um incansável pesquisador da arte do ator. Sempre em busca da resposta do "com fazer?", "do como tocar o que não é tangível?". Cada descoberta foi etapa para outras descobertas, portanto, nunca cristalizadas por ele. O tão falado "método de Stanislawski" não pode trazer este conceito de fechado, fixado, o que levou muitas pessoas a reduzir e não avançar no aprofundamento de suas pesquisas e experimentações. Como diz Franco Rufini em "A Arte Secreta do Ator", de Eugênio Barba e Nicola Savarese: o "sistema de Stanislawski é um sistema, não o sistema" (...) "isso não exclui a existência teórica e metodológica, no trabalho do ator stanislawskiano, de um nível que ocorre antes da manifestação do sentido, um nível que existe anterior à expressão e que é uma condição parta ela. Esse nível é o pré-expressivo, do qual fala a antropologia teatral e é independente das escolhas poéticas e/ou estéticas do diretor".

    E termino com uma afirmação de Stanislawski ao falar sobre o sistema: "não se trata de "realismo" ou "naturalismo", mas de um processo indispensável para a nossa natureza criadora."
    Texto: Cristina Tolentino

    terça-feira, 7 de setembro de 2010

    Antonin Artaud | Biografia

    Texto: Cristina Tolentino

    Antonin Artaud
    Antonin Artaud nasceu em Marselha, no dia 4 de setembro de 1896, e faleceu em Paris, no dia 4 de março de 1948. Foi um poeta, ator, roteirista e diretor de teatro francês.

    Em 1937, Antonin Artaud, devido a um incidente, é tido como louco. Internado em vários manicômios franceses, cujos tratamentos são hoje duvidosos, ele é transferido após seis anos para o hospital psiquiátrico de Rodez, onde permanece ainda três anos.
    Em Rodez, Artaud estabelece com o Dr. Ferdière, médico-responsável do manicômio, uma intensa correspondência. Uma relação ambígua se estabelece entre os dois: o médico reconhece o valor do poeta e o incentiva a retomar a atividade literária mas, julgando a poesia e o comportamento de seu paciente muito delirante, ele o submete a tratamentos de eletrochoque que prejudicam sua memória, seu corpo e seu pensamento.
    Existe aqui um afrontamento entre dois mundos, o da medicina e razão social e o do poeta cuja razão ultrapassa a lógica normal do “homem saudável”.
    As cartas escritas de Rodez são para Artaud um recurso para não perder sua lucidez. Elas revelam um homem em terrível estado de sofrimento, nos falando de sua dor através de uma escritura mais íntima e mais espontânea. São os diálogos de um desesperado com seu médico e através dele com toda a sociedade.
    “Não quero que ninguém ignore meus gritos de dor e quero que eles sejam ouvidos”.

    Para Artaud, o teatro é o lugar privilegiado de uma germinação de formas que refazem o ato criador, formas capazes de dirigir ou derivar forças.
    Em 1935 Artaud conclui o "Teatro e seu Duplo" (Le Théâtre et son Double), um dos livros mais influentes do teatro deste século. Na sua obra ele expõe o grito, a respiração e o corpo do homem como lugar primordial do ato teatral, denuncia o teatro digestivo e rejeita a supremacia da palavra. Esse era o Teatro da Crueldade de Artaud, onde não haveria nenhuma distância entre ator e platéia, todos seriam atores e todos fariam parte do processo, ao mesmo tempo.

    Em Rodez, além de suas cartas (lettres au docteur Ferdière) ele elabora uma prática vocal, apurada dia a dia, associada à manifestações mágicas. A voz bate, cava, espeta, treme, a palavra toma uma dimensão material, ela é gesto e ato.

    Artaud volta a Paris em 1946, onde dois anos depois é encontrado morto em seu quarto no hospício do bairro de Ivry-sur-Seine. Neste período, além de uma importante produção literária ele desenha, prepara conferências e realiza a emissão radiofônica "Para acabar com o juízo de Deus" (Pour en finir avec le jugement de dieu), onde sua vontade expressiva se alia a um formalismo cuidadoso.
    Se nos anos 30 o teatro para Artaud é “o lugar onde se refaz a vida”, depois de Rodez ele é essencialmente o lugar onde se refaz o corpo. O “corpo sem órgãos” é o nome deste corpo refeito e reorganizado que uma vez libertado de seus automatismos se abre para “dançar ao inverso”.

    “A questão que se coloca é de permitir que o teatro reencontre sua verdadeira linguagem, linguagem espacial, linguagem de gestos, de atitudes, de expressões e de mímica, linguagem de gritos e onomatopéias, linguagem sonora, onde todos os elementos objetivos se transformam em sinais, sejam visuais, sejam sonoros, mas que terão tanta importância intelectual e de significados sensíveis quanto a linguagem de palavras.”
    O seu trabalho ainda inclui, ensaios e roteiros de cinema, pintura e literatura, diversas peças de teatro, inclusive uma ópera, notas e manifestos polêmicos sobre teatro, ensaios sobre o ritual do cacto mexicano peyote entre os índios Tarahumara (Les Tarahumaras), aparições como ator em dois grandes filmes e outros menores. Artaud escreveu: "Não se trata de assassinar o público com preocupações cósmicas transcendentes. O fato de existirem chaves profundas do pensamento e da ação segundo as quais todo espetáculo é lido é coisa que não diz respeito ao espectador em geral, que não se interessa por isso. Mas de todo o modo é preciso que essas chaves estejam aí, e isso nos diz respeito" - em TEATRO E SEU DUPLO.

    Antonin Artaud | Teatro: Um Ato Total

    Texto: Cristina Tolentino
    Antonin Artaud
    Circunavegar esse mar mediterrâneo do universo artaudiano veio para mim como um duplo desafio: por um lado, elucidar a concretude da proposta do Teatro e seu Duplo, de Antonin Artaud, em relação à linguagem total do teatro; por outro lado, resgatar a obra de Artaud como o trajeto de um visionário que não teve medo de se adentrar nos recônditos mais profundos da vida (da sua e da realidade de sua época) e, de maneira particular, do teatro, sendo ele mesmo homem teatro, para ressurgir em OBRA VIVA, legando-nos um marco para a Estética Teatral Contemporânea. Já dizia Barrault: "De longe, a coisa mais importante que se escreveu acerca do teatro no século XX".

    É necessário considerar que não pretendo transformar a obra de Artaud num receituário para a arte cênica. O legado que ele nos deixa não é uma geografia que pode ser colonizada, mas pontos de partida, indicações de caminhos, em que idéias suscitam idéias, em que a obra transcende a si mesma.
    Esse homem-teatro é, em si, uma obra de arte e, portanto, estará sempre fora de alcance, nunca poderá ser esgotado. Como diz o próprio Artaud: "A verdadeira beleza nunca nos atinge diretamente. E é assim que o pôr- do- sol é belo por tudo aquilo que nos faz perder" (...) idéias claras são idéias mortas e acabadas." Assim, pretendo evidenciar algumas sinalizações que Artaud nos apresenta, a partir de suas críticas à cultura, ao teatro de sua época e de suas epifanias para o teatro, enquanto ato total: "uma projeção escaldante de tudo aquilo que pode ser retirado de um gesto, uma palavra, um som, uma música e da combinação entre eles."
    Este artigo é um resumo da minha dissertação de mestrado, na USP, São Paulo, cujo tema foi "Em busca de uma Escritura Cênica a partir de Artaud". Para uma melhor compreensão da obra de Artaud e da sua proposta de teatro como ato total, o texto é dividido em três partes: Cultura - Vontade de Potência; A Necessidade Implacável da Criação; A Nova Linguagem do Teatro.
    O meu encontro com Artaud veio confirmar a trajetória que eu já vinha percorrendo, na buscar de recuperar o verdadeiro sentido do teatro enquanto um ritual que exige de seus participantes rigor, disciplina, determinação, coragem, generosidade. Um ritual que é ação e que acontece no tempo e no espaço da cena e que só pode viver em cena, onde passado, presente e futuro se unem naquele instante preciso do ato total. Um teatro que saiba nomear e dirigir as sombras, trazendo à luz do dia verdades que, de outra forma, permaneceriam ocultas. Um teatro que fale a sua linguagem concreta, linguagem física, linguagem materializada no corpo e na voz dos atores e em tudo o que acontece em cena, evocando um universo, onde tudo assume um sentido, um mistério, uma alma.
    É esse o caminho que percorro na minha pesquisa e investigação teatral. Caminho que percorro por uma necessidade vital e que recebi de herança ancestral, legada por tantos outros sonhadores e fundadores de mundos para além de mundos conhecidos. E que esse caminho possa, por sua vez, ser herança para tantos outros que estão e virão.
    "E que com o hieróglifo de uma respiração, eu possa encontrar uma idéia do teatro sagrado". ( Artaud )

    Antonin Artaud | Cultura - Vontade de Potência

    Texto: Cristina Tolentino
    Antonin Artaud

    Nomear e dirigir as sombras

    "Para o teatro, assim como a cultura, a questão continua a ser a de nomear e dirigir as sombras". Artaud deseja mostrar a base orgânica das emoções e a materialidade das idéias nos corpos dos atores, a transformação das concepções em eventos inteiramente "materiais", onde as facetas obscuras do "espírito" são reveladas numa projeção real, material. Captar o "manas", as forças que dormem em todas as formas, como os velhos tótens, que captam, dirigem e derivam forças e a efígie que tem sua sombra que a duplica, assim como o escultor que, enquanto modela, acredita liberar uma espécie de sombra cuja existência dilacerará seu repouso. Não uma contemplação das formas por si sós, mas uma identificação mágica com essas formas, como a pedra que se anima porque foi tocada como se deve.
    Uma obra de arte só é viva, na medida em que ela comunica algo além da sua simples aparência. Esse algo além é a sua sombra que a duplica, ou seja, quando o artista é capaz de inscrever naquilo que ele molda o sopro de vida que o inspirou, como o Deus que moldou o homem com o barro da terra, depois o sopra (o sopro vital) tornando-o um ser vivente. O sopro é esse exercício de uma força criadora, que apreende aquilo que, do interior, se inscreve na exterioridade - as aspirações secretas, os fluxos secretos do desejo. Uma representação comovente habitada por marcas de sua própria história, escrita em sua própria carne. Captar essa verdade não é uma prática insignificante, mas o exercício de uma inspiração quase divinatória. Assim, só atingimos com a nossa arte o ser do homem, quando nos comunicamos em um outro plano, diferente daquele da realidade cotidiana, superficial e inútil. Esse mundo arquetípico, onde se movimentam as aspirações, sonhos, desejos, sentimentos, medos, angústias... as profundezas, as regiões subterrâneas do nosso ser humano universal. Lutas que se travam nas sombras e se fazem revelação, esse invisível que se torna visível, como dizia Klee: "a arte não reproduz o invisível, mas torna visível".
    Quando deparamos com alguma obra de arte que carrega em si essa potência, essa sombra, ela nos atinge, nos perturba, nos encanta, nos transfigura. Não saímos dali como entramos, algo foi acrescentado. É o tempo privilegiado em que não apenas nos sentimos existir, mas onde passamos por uma experiência de recuperação material do ato de existir. Ao ir à exposição de Camile Claudel (para citar um exemplo) vivi essa experiência. A sua obra possui uma força misteriosa e ativa, abriga um fogo vital que jorra do próprio fundo da sua natureza, exalando de si mesma seu encantamento e em que a alma, como que com um hálito, cria seu próprio corpo. Uma obra capaz de nos transtornar e nos envolver.
    Artaud nos diz que "se falta enxofre à nossa vida, quer dizer, se lhe falta uma magia constante, é porque nos apraz contemplar os nossos atos e nos perdermos em considerações sobre as formas sonhadas de nossos atos, ao invés de sermos impulsionados por eles", ou seja, falta à nossa vida força, energia, vibração, intensidade e estamos mergulhados no marasmo. Artaud critica esse homem civilizado, bem formado pelo sistema, que pensa por sistemas e formas convencionais, fechadas, sendo que a vida é tensão, é dinâmica, em que o pensamento, a palavra e a ação buscam a sua unidade conflitual.
    O verdadeiro teatro também tem suas sombras, que rompem com suas limitações, duplica as formas, se expande, traz à luz aquilo que recusamos ver, rompe a linguagem para tocar a vida. Só que a "nossa idéia petrificada do teatro encontra-se com nossa idéia petrificada de uma cultura sem sombras onde, seja para que lado for que se volte, nosso espírito só encontra o vazio, quando na verdade, o espaço está cheio".

    "É paradoxal que em nossas vidas,
    o vazio possa ser repleto,
    o negativo possa ser afirmativo,
    o vácuo possa ser o lugar em que a maioria das coisas acontecem."
    Lao Tsé )

    Cultura em Ação

    Artaud propõe uma cultura que seja inseparável da vida. A ação do homem inventa o homem, no conflito com o destino. Uma cultura que se constrói continuamente e que não dá para se encerrar e se fechar em livros "sobre a cultura." Uma cultura em vida, em movimento, em ação, que se faz e se refaz nesse "vir-a-ser que não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço - esse meu mundo dionisíaco do eternamente criar a si mesmo, esse meu para além do bem e do mal, sem alvo... vontade de potência."
    Nietzsche fala dessa vontade de potência como um jogo de forças e ondas de forças, que é, ao mesmo tempo, uno e múltiplo, "aqui acumulando-se e ao mesmo tempo ali minguando, um mar de forças tempestuando e ondulando em si próprias, eternamente mudando, eternamente recorrentes, com descomunais anos de retorno, com uma vazante e enchente de suas configurações, partindo das mais simples às mais múltiplas, do mais quieto, mais rígido, mais frio, ao mais ardente, mais selvagem, mais contraditório consigo mesmo, e depois outra vez voltando da plenitude ao simples, do jogo de contradições de volta ao prazer da consonância."
    Essa vontade de potência se traduz, no teatro artaudiano, como um jogo de envolvimento e afastamento mútuo, em que o constituído se confunde com o constituinte, onde nada pode aparecer como acabado, como claro e distinto, como realizado, em que nenhuma transformação e nenhum acontecimento é definitivo. Um conflito permanente entre o uno e o múltiplo, cujas operações simbólicas e físicas transbordam e lutam entre si.
    O sábio Heráclito de Éfeso já acreditava num mundo em perpétua mudança, em eterno vir-a-ser, onde tudo se torna o contrário de si mesmo, onde as transformações no mundo derivam da interação dinâmica e cíclica dos opostos: o dia vira noite, o inverno, primavera; o doce, amargo; o pequeno, grande; o grande diminui; o quente esfria; o frio se aquece...Seu princípio universal era o fogo, um símbolo para o contínuo fluxo e a permanente mudança em todas as coisas. Imagem do fogo que se acende e se apaga na mesma medida e que pode ser destruição, mas, também, criação.
    Um teatro contra o que na vida há de constituído, de manifesto, e que pretende para si a eficácia da magia e dos ritos. O olho do artista, como diz Thomas Mann, "tem um viés mítico sobre a vida; por isso, precisamos abordar o mundo dos deuses e demônios - o carnaval de suas máscaras e o curioso jogo do "como se', no qual o festival do mito vivo abole todas as leis do tempo, permitindo que os mortos voltem à vida e o "era uma vez" se torne o próprio presente - com o olho do artista." E Joseph Campbell completa: "a máscara em um festival primitivo é venerada e vivenciada como uma verdadeira aparição do ser mítico que ela representa - apesar de todo mundo saber que foi um homem quem fez a máscara e que é um homem que a está usando. Mas, durante o tempo do ritual do qual a máscara faz parte, aquele que a estiver usando é também identificado com o deus." Mas essas festas religiosas celebradas nos rituais primitivos não acontecem em total ilusão. Há uma consciência de que as coisas "não são reais." Campbell esclarece essa questão com uma citação de Marett : " o selvagem é um bom ator que sabe envolver-se no seu papel, como uma criança brincando e também como uma criança, é um bom espectador que pode ficar morto de medo de um rugido que sabe muito bem não ser de um verdadeiro leão."
    É essa vida que se desenvolveria sob o signo da verdadeira magia, que Artaud quer evocar, advertindo-nos que a intensidade da existência está intacta e que, por medo, vivemos no estado de impotência em possuí-la. Por isso nos propõe revermos nossas idéias sobre a vida, numa época em que nada mais adere à vida. Colocamos a cultura em uma espécie de Panteão: de um lado fica a cultura (idolatrada em seus panteões) e, de outro, a vida. Não entendemos que a verdadeira cultura é um meio apurado de compreender e exercer a vida, onde o mundo não é condenado e evitado como um pecado, mas voluntariamente assumido como um jogo ou dança, onde o espírito brinca. Ele faz uma crítica à idéia ocidental da arte, em que arte e cultura não podem andar juntas, onde a arte coloca o espírito numa atitude separada da força, sendo que a verdadeira cultura age por sua exaltação e sua força. No teatro oriental, diz Artaud, "as formas apoderam-se de seu sentido e de suas significações em todos os planos possíveis; ou se preferirem, suas conseqüências vibratórias não se fazem sentir num único plano, mas em todos os planos do espírito ao mesmo tempo", sendo capaz de nos transtornar e encantar e não se detendo nos aspectos exteriores das coisas, mas trazendo à luz do dia, através de gestos ativos, essa parte de verdade oculta sob as formas em seus encontros com o Devir.
    É nesse espaço virtual, diz Artaud, que se instaura o teatro. Um jogo ligado ao imprevisível onde as regras nascem dele mesmo, nascem da lógica do acaso, onde cada lance lança suas regras, abolindo as certezas, abrindo novas questões, num olhar sempre inaugural sobre o mundo, emergindo no perigo, no desejo invencível do vir-a-ser: "manifestar e ancorar inesquecivelmente em nós, a idéia de um conflito perpétuo e de um espasmo onde a vida se dilacera a cada minuto, onde tudo na criação se ergue contra nosso estado de seres constituídos".
    É a roda infinita do Devir, na qual o caos é condição necessária da produção da forma. Desconstruir, descentrar, desintegrar, construir, equilibrar, integrar. O ir-se abrindo e se metamorfoseando. Ciclo de caos e cosmo em devir permanente. Dioniso e Apolo. "Teremos chegado muito a favor da ciência estética se chegarmos à certeza imediata da introvisão de que o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações", diz Nietzsche. O elemento apolíneo relacionado à Poíesis - estado de alma. Saber - fazer poético.Gozo oriundo da obra feita pela própria pessoa, possibilitando uma tentativa de combate para um conhecer deste mundo, distinto do conhecimento oferecido pela ciência. O elemento dionisíaco relacionado à Aísthesis - gozo estético do ver e reconhecer. Circula pela sensibilidade, operando sobre o conceito do conhecimento pelos sentidos, privilegiando o sentimento e a sensação. A experiência da densidade do ser, como diz Sartre. A atividade da aísthesis (elemento dionisíaco) pode e deve levar à poíesis (elemento apolíneo), na medida em que o ato criativo pode e tem de abandonar sua atitude puramente contemplativa e participar da criação da obra em seu conteúdo e forma.
    Uma matéria em ebulição na direção de um possível. A busca de dar forma (simbolizar) àquilo que não tem forma (o afeto, os sentimentos, as emoções). O desvelar desses movimentos obscuros, em que o invisível ganha visibilidade, em que as produções do inconsciente (do ato embriagador da criação) irão materializar-se no poético (eficácia simbólica). O partir do sensível, do espaço cênico, do caos dionisíaco, para se chegar ao apolíneo, ao matemático, à partitura. A cultura é "esse sem espaço nem tempo" ligada ao inconsciente, produzindo cataclismas, que ressurgirão com redobrada energia, incitando - nos a retornar à natureza, a reencontrar a vida.
    Contra a cultura da Europa que supervaloriza a razão, Artaud vem propor a união entre corpo e espírito, numa visão do homem com um ser integral, orgânico e não multifacetado. O homem construindo a cultura e a cultura transformando o ser do homem em sua profundidade. Como nos diz Vera Lúcia Felício: "uma cultura que não é escrita, pois, escrever é impedir o espírito de se movimentar no meio das formas como uma vasta respiração", mas que vai sendo inscrita nesse movimento incessante da vida, desaparecendo a dicotomia homem e natureza, vida e regras de viver.

    É no México que Artaud vai encontrar aquilo que ele chama de cultura viva: "ligada ao sol, perdida nas correntes da lava vulcânica, vibrante no sangue índio, há no México a realidade mágica de uma cultura, cujas chamas de pouca coisa precisariam para se reacender materialmente. Falando do México, não é por acaso que sou levado a falar do fogo. Se toda a civilização começou pelo fogo, a idéia do fogo está subjacente e alimenta sempre toda a realidade mexicana. O fogo, imagem da civilização, permaneceu no México mais que uma imagem através dos tempos, incorporando-se ativamente nos Mitos pelos quais a civilização do México manifesta a sua vivacidade".Para Artaud, a cultura tem que ser em carne viva, queimar organismos. Ele diz que não há cultura sem fogueiras e o México parece deter o meio de reavivar sem fim fogueiras de culturas vivas. As imagens míticas dos quatro elementos: fogo, céu, água, terra parecem ser intrínsecas ao México, "nelas está todo o México ao nu " (...) "e assim como toda a matéria existente passa num dado momento por esses quatro pontos, assim como a física moderna reencontrou energias e princípios que não são outros, em linguagem clara, senão símbolos da antiga alquimia, e ao Mercúrio corresponde o movimento, ao Enxofre a energia, ao Sal a massa estável, assim também a atividade dos princípios manifesta em imagens no México, os seus poderes perpetuamente renovados".
    A ida ao México permite perceber que não há civilização nem cultura válidas sem a idéia aceita e partilhada de um mito que continua a vivificar os organismos, permitindo.-lhes confrontar-se magnética e constantemente com símbolos universais. No México, o homem é visto não como separado da natureza, mas em uníssono com ela, com o universo e, que, se encontrando perto das forças da natureza, participa de seus segredos. Da sua experiência com os Tarahumaras, Artaud nos diz que é falsa a idéia de que eles não tenham civilização, pois eles possuem a mais elevada idéia do movimento filosófico da natureza..."captaram os segredos deste movimento através de Números-Princípios, tal como Pitágoras o fez". Artaud descreve que diante de cada aldeia Tarahumara e nos quatro pontos da montanha, há uma cruz, que nada tem a ver com a cruz católica, mas representa o homem esquartejado no espaço, ou seja, o homem de braços abertos, ligado aos quatro pontos cardeais. Uma idéia ativa do mundo, uma idéia geométrica à qual a própria forma do homem está ligada.
    "O que a cultura mexicana propicia é o restabelecimento da idéia de uma grande harmonia, onde espírito e matéria não são mais rivais" e uma civilização que põe o corpo de um lado e o espírito do outro arrisca-se, como nos diz Artaud, a "ver quebrarem-se os laços que unem estas duas realidades dissemelhantes".
    O artista é chamado a ser um Tarahumara, aquele que abriga no fundo do seu coração o coração de sua época...aquele que é porta-voz...aquele que está ligado, que possui uma percepção mais apurada da vida, que não apenas vê, mas tem visão, um visionário. E que no ato de realizar a sua arte dá vazão às angústias de sua época, interferindo neste mundo e transformando-o, através da recuperação dessa magia, dessa comunicação constante entre o interior e o exterior, o ato e o pensamento, a matéria e o espírito.
    Artaud é contra essa cultura onde apenas as pessoas ditas cultas participam, pois uma civilização assim "já não tem nada a ver com as suas fontes primitivas de inspiração", perdeu a sua magia, a sua ligação com a profundidade da vida.
    É no teatro que Artaud busca a recuperação dessa verdadeira cultura: "O teatro pode ajudar-nos a recuperar uma cultura e dar-nos dela imediatamente os meios: a cultura não está nos livros, mas nas forças que emanam dos livros, ela está nos nervos, nos órgãos sensíveis, numa espécie de manas que dorme e que pode mostrar o espírito imediatamente na atitude de receptividade a mais alta, de receptividade total... este manas, o teatro tal como eu o concebo, desperta-o..."

    Teatro Ocidental e Teatro Oriental

    Antonin Artaud
    Bali - Dança Ketchak

    É no contato com o teatro de Bali que Artaud vai encontrar aquilo que mais se aproxima à sua busca do verdadeiro sentido da cultura e do teatro. Assim como a cultura no ocidente está ligada à instrução acadêmica, desligada da essência do ser e da vida que o circunda, o teatro seguindo esta mesma direção, encontrava-se em estado de estagnação psicológica e literária (era visto como um ramo da literatura), incapaz de nos transtornar e nos encantar. "A enfermidade espiritual do ocidente, que é o lugar por excelência onde foi possível confundir a arte com o estetismo, está em pensar que poderia existir uma pintura que só servisse para pintar, uma dança que seria apenas plástica, como se alguém tivesse desejado cortar as formas da arte, separá-la de todas as ligações com todas as atitudes místicas que podem assumir ao se confrontarem com o absoluto." (...) "É por não se deter nos aspectos exteriores das coisas num único plano que o teatro oriental não se limita ao simples obstáculo e à aproximação sólida desses aspectos com os sentidos; é por não parar de considerar o grau de possibilidade mental de que se originam que ele participa da poesia intensa da natureza e conserva suas relações mágicas com todos os graus do magnetismo universal." Para Artaud o uso da palavra no teatro ocidental não contém uma força ativa, não rompe a aparência para se chegar ao espírito, mas fica somente no nível exterior de um pensamento perfeito que se degrada ao se exteriorizar. Já no teatro balinês sente-se um estado anterior à linguagem e que pode escolher sua linguagem: música, gestos, movimentos, palavras. E essa é a linguagem expressiva, diz-nos Rousseau..."aquela em que o signo diz tudo antes que se fale" (...) "onde o objeto oferecido, antes da palavra, acorda a imaginação, excita a curiosidade, mantém o espírito em suspenso".
    Antonin Artaud
    Bali - Dança Barong
    O teatro oriental é, para Artaud, a concretização dessa linguagem - "o saber conservar um certo valor expansivo das palavras, uma vez que, na palavra, o sentido claro não é tudo e sim, a música da palavra que fala diretamente ao inconsciente". Uma linguagem não da palavra articulada, discursiva (como acontece no ocidente), mas uma linguagem de gestos, atitudes e signos. Uma linguagem que não se define a não ser pelas possibilidades da expressão dinâmica e no espaço, em oposição às possibilidades da expressão pela palavra dialogada. Uma palavra que não será mais conotada mas detonada. Ele propõe uma linguagem que circule pela sensibilidade e que, abandonando as utilizações ocidentais da palavra, faz das palavras, encantações: "ela emite uma voz, utiliza vibrações e qualidade de voz; faz os ritmos se repetirem apaixonadamente; calca sons; procura exacerbar, exaltar, encantar, deter a sensibilidade".

    Através desta linguagem, que assume uma nova espécie de presença e, através dos movimentos dos atores, criamos uma "poesia natural", uma "poesia no espaço", a verdadeira poesia sensível do teatro. Aquela que utiliza todos os meios de expressão utilizáveis em cena, como a música, a dança, artes plásticas, pantomina, gestos, entonações, iluminação, cenário. Isso na medida em que eles se revelam capazes de aproveitar as possibilidades físicas imediatas que a cena lhes oferece para substituir as formas imobilizadas da arte por formas vivas e ameaçadoras - "tentação física da cena".
    Ao falar do Teatro Ocidental, Artaud afirma a perda da nossa sensibilidade para com a manifestação do sagrado, onde o mundo profano é transcendido, onde se torna possível a comunicação com os deuses: "perdemos aparentemente nossa sensibilidade para com essas encarnações cósmicas".O teatro ocidental, atado às suas preocupações cotidianas, esqueceu a teatralidade dos monstros, o puro frêmito dramático derivado da simples vista da monstruosidade, esse medo metafísico (quando os nossos apoios normais são dissolvidos, quando se coloca em cheque a nossa segurança, "quando perdemos a terceira perna do nosso tripé estável") e ancestral (respeito pela manifestação de algo). O teatro para Artaud, deve ser um ATO TOTAL, sendo, a vida, o lugar por excelência, onde essa linguagem se enraíza: "eu não concebo a obra como desligada da vida" e, o palco, o lugar em que, de maneira orgânica e profunda, essa linguagem dinâmica e objetiva se inscreve (o significado que vai nascer a partir da sua construção - materialidade do significante), tornando a encenação uma linguagem particular. Um teatro que nos reata com a vida em lugar de nos separar dela, pois é um teatro provocador, revelando tudo que a vida dissimula ou não pode expressar. Só assim, poderemos "acreditar num sentido de vida renovado pelo teatro onde o homem torna-se senhor daquilo que ainda não existe, e o faz nascer". Um teatro que se propõe a ser renovação da vida, renovação do homem...do homem integral e não só do homem racional: "acima de tudo precisamos acreditar no que nos faz viver e que algo nos faz viver". Um teatro que seja como "terra do fogo, lagunas do céu, batalha dos sonhos" e que nos levará a uma aproximação com a vida ardente, a vida em estado puro, onde poderemos encontrar alguma coisa de verdadeiramente essencial no ser.
    Texto: Cristina Tolentino